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Contributo para o entendimento de uma avaliação diferente

Contributo para o entendimento de uma avaliação diferente
Os critérios da avaliação normativa versus avaliação sistémica
Um dia qualquer de Abril de 2005…

“…devíamos passar menos tempo a classificar as crianças e mais tempo a identificar as suas competências e dons naturais, e a cultiva-los.” (Goleman, 1995)

Gostava de lembrar os leitores que, hoje em dia, a ciência pode ser rigorosa sem recorrer somente à linguagem matemática, que a inteligência tem um entendimento mais holista e diversificado(1), que o método experimental já não é o único aceite entre a comunidade científica e que os métodos ecológicos e de estudo de caso são hoje comuns em teses de mestrado e doutoramento, e que, enfim, a complexidade já não é tão complicada (2) e inextricável que não possa ser estudada e tornar-se inteligível (3).

Os critérios de avaliação utilizados na maioria das disciplinas são, quanto a mim, portadores de uma visão redutora, assentes no paradigma cartesiano (4) e positivista (5) que vê o aluno como um somatório de parcelas excessivamente simplificadas por via da laceração forçada das suas competências. A avaliação não pode ser o somatório das parcelas obtidas em diferentes domínios, como se fosse possível olhar para os saberes do aluno sem que a sua forma de estar e ser interfiram recursivamente na imagem que temos dele.

O aluno é como ser humano, por si só, um ser único. Único também na relação específica que se estabelece entre as suas potencialidades, capacidades e competências. Por isso, o processo de ensino/aprendizagem, na medida em que cada aluno assimila e interage especificamente com as matérias, também é único e, não sendo simplificável, pode todavia ser inteligível. E, em vez de nos iludirmos com a certeza positivista da objectividade das percentagens que os actuais critérios apontam, devíamos procurar um entendimento mais ecológico e holista da avaliação, que apelasse à não redução em factores ou domínios e que aceitasse a modelação sistémica como processo que permite aceder à informação relevante para a avaliação do aluno.

“A modelação sistémica desenvolveu-se precisamente para permitir essa passagem reflectida do complicado ao complexo, da previsibilidade certa à força de muito cálculo à imprevisibilidade essencial e todavia inteligível” (Le Moigne, 1994).

Quanto à divisão e ao peso dos vários domínios designados no referido documento, gostaria de lembrar os leitores que os recentes estudos sobre as emoções (Damásio, 1994 e 1999) e inteligência emocional (Goleman, 1995) rebatem o antigo conceito da supremacia do QI, com a sua faceta exclusivamente cognitiva, como forma de avaliar a inteligência (6). Assim, mais do que a avaliação dos saberes, interessa avaliar as competências e as atitudes inerentes, ou seja, os saberes em acção. Aliás, como se avaliam competências senão em acção?
Por exemplo, um aluno que responde correctamente no teste de biologia à pergunta – “quantas raças humanas existem?” – respondendo que existe somente uma (7) mas, que toma atitudes racistas durante as aulas e fora delas. Como avalia-lo? Aplicando a actual fórmula tem uma classificação dita positiva. Mas será que a merece?

A aproximação a uma avaliação sistémica tem em linha de conta que as aprendizagens do aluno se reverberam e se auto-organizam de forma particular e, este processo, repercute-se na manifestação das suas competências. Logo, uma avaliação que não contemple esta forma globalizante de ver o aluno é redutora e pretensiosa. Como é possível pensar-se que, com uma simples divisão em domínios, se consegue ver o todo? Mais ainda, como é que as partes, diga-se saberes, interagem entre si?

A avaliação sistémica, em oposição à normativa (8), admite pontos de partida (9) e processos distintos de evolução dos alunos e, por isso, aquilo que está em causa é a relação que se estabelece entre as competências que se adquiriu e se revelam mais ou menos importantes para o futuro, não só no âmbito dos saberes e técnicas ligados ao percurso académico, mas na forma como podemos prever que aquele aluno irá encarar o seu futuro como cidadão, como pai, como elemento de uma equipa de trabalho, o seu posicionamento perante os problemas do mundo, etc…

O mais importante, quanto a mim, é perceber como o aluno conjuga e utiliza os seus saberes, (re)transforma-os em competências e aplica-os com propósito num determinado contexto onde a manifestação de valores, como os éticos e morais, sejam considerados fundamentais. Por isso, os professores, ao avaliar, devem admitir a complexidade do processo de aprendizagem, compreender a diversidade de cada aluno e serem criteriosos na sua natural subjectividade.

A não desintegração da avaliação em domínios não impede a apreciação das competências do aluno. Assim, em vez de avaliarmos analiticamente cada domínio e, à custa de uma fórmula qualquer (que será sempre arbitrária!), dando pesos distintos a cada domínio, calcular matematicamente as classificações dos alunos, podemos olhar para o aluno sobre determinadas perspectivas, a que chamamos dimensões de formação, não perdendo de vista a visão de conjunto. A avaliação terá assim em conta o contributo das diversas competências adquiridas e não adquiridas, respeitantes a cada área, para a formação do aluno no âmbito dos objectivos da disciplina e do ano escolar. Perante o confronto desta avaliação com os critérios previstos reconhecemos, distinguimos e posicionamos o aluno em determinado perfil classificativo.

Ao considerarmos as dimensões de formação como focos atencionais, sobre os quais recairão a nossa avaliação não lhes estamos a atribuir qualquer peso a prior, estamos antes a sugerir determinados pontos de vista sobre os quais os alunos devem ser avaliados, cabendo sempre ao professor, como monitor do processo de aprendizagem do aluno, decidir a relação ponderal entre elas.

E depois existe a hipocrisia ou a falta de brio profissional que atiram para trás das costas qualquer critério e, reduzida e simplisticamente, atribuem a classificação com base na média aritmética dos testes – nem sequer uma média ponderada fazem com base na relevância que as matérias abordadas e testadas têm!
Disseram-me que até na disciplina de filosofia se atribuem as classificações com base num único critério que é a média aritmética dos testes efectuados. Logo esta que, presumo eu, devia apelar a competências que não são passíveis de se revelar através do teste escrito. Acham bem?

A minha opinião não pretende rebaixar o esforço e a dedicação dos professores que discutiram e aprovaram os referidos critérios. Mas, tendo em conta que os professores de hoje ensinam os homens de amanhã, não será urgente reflectirmos na mudança dos paradigmas que sustentaram, e ainda sustentam, os processos de ensino e avaliação? Que exemplo somos nós de inovação para os nossos alunos, quando lhes ensinamos e avaliamos como ensinávamos e avaliávamos quando terminamos a licenciatura?
Haja coragem e vontade!

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(1) São exemplos os estudos de António Damásio sobre o papel das emoções na tomada de decisão (“O erro de Descartes”,1994 e “Sentimento de Si”, 1999) e os de Daniel Goleman (“Inteligência Emocional” 1995).

(2)Convém aqui desfazer o possível equívoco de se confundir complexo com complicado: “(...) diz-se que um sistema é complicado quando contém numerosos elementos sem relações de conjunto (...). Num sistema complexo, pelo contrário, a integração e a interdependência dos elementos originam o aparecimento de propriedades novas, chamadas «emergentes», ausentes do sistema complicado” (Reeves, 1998:35). Por exemplo, um conjunto de músicos em que cada um com o seu instrumento produz sons díspares dos demais, representa o complicado. Uma orquestra, onde os músicos tocam em harmonia uma sinfonia, representa o complexo.

(3) “…a redução de um real complexo a um linear simplificante foi reconhecida mais perversa nos seus efeitos do que eficaz na sua pedagogia.” (Le Loigne, 1994).

(4) “(...) se reduzirmos gradualmente as proposições complexas e obscuras a proposições mais simples, e se de seguida, partindo da intuição das mais simples de todas, tentarmos elevar-nos pelos mesmos degraus até ao conhecimento de todas as outras” (in Ouvres Philosophiques, Descartes, Regles pour la diretion de l’espirit, Tome I, pp. 100-101).
Contrariamente, Le Moigne (1994:122) refere que “quanto mais se pretende clarificar disjuntando conceitos imbricados mais se empobrece a inteligibilidade do conhecimento construída pela interacção deliberada desses conceitos”.

(5) “Onde só é pensável o que pode ser matematicamente pensável” (Moigne, 1994:47). De entre os nomes mais sonantes do positivismo científico salientam-se Auguste Comte e Laplace. [1] Sistémica ou ciência dos sistemas (Le Loigne, 1994)

(6) “…a inteligência académica não dá praticamente qualquer espécie de preparação para o tumulto – ou as oportunidades – que as vicissitudes da vida nos trazem. (Goleman, 1995)

(7) “Descobertas recentes acabaram por confirmar estas ideias e por desconstruir completamente o conceito de "raça", dado que indivíduos com fenótipos diversos, como um branco e um negro, podem ter um maior número de genes em comum do que indivíduos de fenótipos semelhantes.” (Diciopédia, 2004).

(8) Avaliar de forma normativa não contempla a diversidade de pontos de partida de cada aluno nem tem em linha de conta as competências como foco da avaliação (os saberes e atitudes em acção!).

(9) Este fenómeno refere-se à extrema sensibilidade aos dados iniciais, sendo conhecido como «efeito borboleta». Deve o seu nome ao meteorologista Edward Lorenz e pode enunciar-se da seguinte forma: “(...) uma borboleta que agite o ar hoje em Pequim pode influenciar tempestades no próximo mês em Nova Iorque” (Gleick, 1994:31).
Ou, numa referência mais popular:
“Por um prego, perdeu-se a ferradura;
Por uma ferradura, perdeu-se o cavalo;
Por um cavalo, perdeu-se o cavaleiro;
Por um cavaleiro, perdeu-se a batalha;
Por uma batalha, perdeu-se o reino!” (Gleick, 1994:49)


Bibliografia

Damásio, António, 1994, O erro de Descartes, Publicações Europa-América (16ª Edição, 1996)
Damásio, António, 1999, Sentimento de si, Publicações Europa-América (5ª Edição, 2000)
Gleick; James (1994), Caos – a construção de uma nova ciência, Gradiva, Col. Ciência Aberta, 2ª ed..
Goleman, Daniel, 1995, Inteligência emocional, Temas & Debates, (12ª Edição, 2003)
Le Moigne, Jean-Louis, 1994, O construtivismo – dos fundamentos, Vol. I, Instituto Piaget, Col. Epistemologia e Sociedade.
Reeves, Hubert (2000), Aves, maravilhosas aves, Ed. Gradiva, Col. Ciência Aberta, Lisboa.


Pedro Sá
Prof. de Educação Física

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